Minhas queridas:
Se recorro a vocês para desabafar, não é por estarmos novamente no verão, o mesmo é dizer na época dos incêndios e a desgraça estar a repetir-se. Não é, também, por, vivendo eu em terras do sotavento algarvio, ter de aguentar a invasão da marabunta humana, fugindo do nevoeiro e das bandeiras vermelhas, içadas nas praias do centro e do norte do país por um salva-vidas de camisola de lã. Recorro a vocês porque uma fração considerável dos meus irmãos humanos, reagem como se eu estivesse falar zulu quando a eles me dirijo. A minha consciência mantém-se tranquila, pois não estou a usar-vos. Chamando-vos para junto de mim, a fim de ouvirem os meus desabafos, estou a prestar um grande serviço à vossa comunidade porque, em pleno verão, é um risco manterem-se longe da linha de costa. E porquê? Como sabem muitíssimo bem (constatam-no todos os anos), o cardume humano, assim que veste o fato de banho, aplica o protetor solar e deteta no ar aquele cheirinho saído da fumarada dos assadores, é tomado por uma fome específica e avassaladora. Se são oito da manhã, não sossegam enquanto não chega a uma da tarde. Todos os verões é a mesma coisa: não conseguem viver sem…
Não quero recordar aqui o vosso destino fatal; sabem do que estou a falar. Os vossos antepassados foram privados do sossego da terceira idade, por, na época estival, terem acabado a pingar a sua preciosa gordurita, tão penosamente acumulada, em cima de uma fatia de pão saloio. Há quem diga que certas espécies animais estão no planeta porque os Gerentes das suas almas coletivas acharam que os humanos precisavam de uma dieta variada. Em face desta crença, não hesitaram em aprovar essa função nas suas espécies encarnados na Terra, sem, segundo suspeito, as terem consultado. É por isso que vocês, caríssimas sardinhas, ainda hoje não percebem por que são comidas… que digo eu?… devoradas tão sofregamente, de preferência à sombra dos pinheiros, para grande alegria das moscas e das formigas, que se banqueteiam com as cabeças, bem chupadinhas, deixadas no chão. Eu nunca passei por essa experiência, mas imagino que não deve ser agradável descer por um tubo, à mistura com pasta de pimento assado e vinho frisante fresquinho, tubo esse que vai dar a um bandulho dilatado, onde já começou a fermentar uma lama de pão com manteiga, queijo e azeitonas. Parece que estou a alongar-me, dissertando sobre temas periféricos ao verdadeiro motivo deste sermão. Contudo, como certamente compreenderão, é preciso esperar pelos elementos posicionados na cauda do pelotão sardínhico. Enquanto o cardume todo não chegar e não se espalmar, em semicírculo, junto desta rocha onde me sento, muitas sardinhas se queixarão de que não ouviram o meu desabafo desde o princípio.
Pronto. Agora que está tudo como dever ser, posso começar. Repesco aquela imagem horripilante, acima referida, convosco a cumprir o destino bárbaro de pingar gordura nos assadores, para vos dizer que há imenso tempo que certos elementos do cardume humano deixaram de pingar as suas banhas nas fogueiras da Santa Inquisição. A perspetiva de que tal pudesse acontecer, sem terem tempo de se prepararem psicologicamente para tão nefasto fim, gerou neles um medo de todo o tamanho. O resultado foi um impulso irreprimível que os levou a retraírem-se, a refugiarem-se dentro de casa, de preferência quietinhos, sem fazerem barulho, não fosse o vizinho ouvir e denunciá-los por atividades heréticas. É claro que a vossa argúcia já vos fez perceber que esta contração, este enquistamento do ser, lhes mirrou o interesse pelas artes: o frufru de mexer em pautas musicais podia ser interpretado, pelos cerosos ouvidos do nefando vizinho, como o desfolhar das páginas da Torá; a queda da lata de lavar os pincéis do pintor, seria, para o farejador de heresias, o tombo involuntário do sagrado candelabro; o esturro do refugado para a feijoada cheiraria, com um bocadinho de boa vontade, a enxofre; trautear uma modinha, enquanto remendavam as meias, poderia soar ao hino das bruxas. Não preciso de dizer mais. Vocês, já perceberam o quadro. Quer isto dizer que muitos membros do cardume humano se fecharam a sete chaves, borradinhos de medo. Nem os calores sufocantes do verão os fez deitar o nariz de fora. E com razão, diga-se. A mera observação dos instrumentos de tortura, que o carrasco mantinha em perfeito estado de conservação e funcionamento, levaria qualquer criatura de Deus a inventar uma confissão, só para se livrar de os experimentar: à pergunta do Inquisidor “Vieram-me dizer que andas a judaizar às escondidas. É verdade, minha herege?”, logo ela respondia “Ando sim, senhor inquisidor. E digo-lhe mais, ontem, que foi quarta-feira santa, esquartejei a minha mãezinha e atirei os bocados prò rio. Só tenho pena que as sardinhas não cheguem aqui. Um banquete e pêras!” Isto só de ver os instrumentos de tortura; após dois minutos a experimentar a sua eficácia, com a elasticidade das articulações no limite, à pergunta do inquisidor “Constou-me que tens um pacto com Belzebu, minha puta! Confessas?”, a resposta sairia pronta: “Tenho pois, desde os sete anos! E também pretendo informar Sua Eminência de que na noite de natal do ano passado, com o presépio montado com musgo fresco e tudo, fritei o meu filho, recém-nascido, no óleo da filhoses. E agora diga lá a este brutamontes zarolho p’ra parar com a tortura, que está a doer que se farta!”
Por isto já vocês podem avaliar, minha amigas, as agruras por que temos passado e o que temos feito uns aos outros.
Naqueles tempos conturbados, houve imensos humanos que sentiram pena por Deus-Nosso-Senhor os não ter criado com seis braços e respetivas mãos (barro não lhe faltava), para, como o macaco, taparem os olhos, os ouvidos e a boca, o que significaria não ver, não ouvir e não falar. Com essas mãos suplementares teriam tapado os olhos para não verem os clérigos a fazer o que, na missa, tinham dito ao cardume, perdão, ao rebanho, para não fazer, sob pena de irem arder eternamente nas labaredas horrorosas do inferno; teriam tapado os ouvidos para não ouvirem certas coisas que eles diziam, depois de terem proibido a congregação de as dizerem; teriam tapado a boca para não repetirem as mentiras que eles combinavam em privado, e disseminavam publicamente, garantindo serem verdade, depois de, durante as homilias, terem defendido que a mentira devia ser promovida a pecado mortal. Assim era o nosso viver. E, em certa medida, para alguns, continua a ser.
Todavia, se, por força das circunstâncias exteriores, aquelas pobres pessoas estavam em tão lamentável e perigosa situação, poderiam ter aproveitado o ensejo para se recolherem interiormente. Não direi todas; meia dúzia delas já estaria bem. Mas… recolheram-se vocês, veneradas sardinhas? Claro que não, pois não sabem o que seja isso de recolhimento interno. Pois também milhões de humanos não se recolheram e, assim, sem se aperceberem, ficaram sem saber o que isso possa ser. Daí que, quando alguém, presentemente, lhes fala no assunto, eles, que não aprenderam a olhar para dentro, mas aprenderam a falar para dentro, dizem em silêncio: “Só me faltava mais este!”
Agora a parte mais dramática: não foram só os cidadãos desses tempos do século XVI que não se recolheram, foram também os que vieram à Terra até 1821, data do triste pio do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Pior ainda: não nos podemos esquecer dos que desceram a este vale lágrimas desde então até hoje. Tirando uns quantos – as excepções do costume – a todos se lhes vidrou o olhar. Admiram-se, minhas amigas, que, com a passagem do tempo, muitíssimos tenham desatinado ao ponto de dizerem que o voto é a arma do povo?
Agora, minhas sardinhitas adoradas, aproveitando este mar calmo de julho, que me permite estar aqui sentado sem correr o risco de a rebentação me encharcar a batina e as sandálias, vou interromper o desabado para vos oferecer uma pérola didática. Mais concretamente, uma das mais interessantes potencialidades do cardume humano. É assim: quando uma pessoa se recolhe decentemente (isto é, sem que esse movimento signifique fugir para dentro), não só evita as desassossegadas maluqueiras das outras pessoas, como encontra algumas formas de as compensar, senão mesmo de as neutralizar, assim se beneficiando si próprio e ao resto do cardume. Já perdi a conta às vezes que lhes disse isto, por estas e por outras palavras, quer em tom de brincadeira, como se os afagasse com uma pena de pavão, quer vigorosamente como quem malha numa bigorna. Sabem o que aconteceu? Nada! Pelo menos que eu desse por isso. O coletivo nem buliu. Enquanto milhões de vocês, em cardume, passeavam por esse vasto atlântico, milhões do nosso cardume permaneciam no entorpecimento, abdicando de ser um cardume (tipo rebanho, com pastor e tudo) para serem uma réstia de cebolas penduradas da trave mestra do celeiro.
Não culpo ninguém. Sei que uns aceitaram a insensibilidade e a subserviência de livre vontade, enquanto outros a elas foram condenados pelos oportunistas espertalhões da Monarquia, da República e dos governos mais recentes. Já vos disse que o Tribunal do Santo Ofício foi extinto em 1821, mas outras organizações civis e militares fizeram questão de assegurar a perseguição, a denúncia, a tortura e a morte. Porém, a essência deste Tribunal Inquisitorial ainda hoje permanece na Igreja Católica Romana através da chamada Congregação para a Doutrina da Fé. Já não há autos de fé, é certo – o que muito agrada à maioria dos cardeais da cúria romana, por os seus prostitutos, permanentes ou ocasionais, estarem a salvo. A perseguição, agora, é muito mais subtil.
Como vêem, minhas amigas, não é fácil aos humanos mudarem de hábitos, principalmente durante o verão, altura em que o calor convida as mentes para a contemplarão do recheio dos biquínis do tipo fio dental, e os corpos para a posição reclinada. Vocês também não mudam: desde sempre viveram como vivem hoje, em constante movimento e nuazinhas como o vosso deus vos fez e vos pôs neste mundo desvairado. Mas são louvadas porque não fazem mal a ninguém. Antes pelo contrário, principalmente no verão. Quanto a nós…
Esperem aí!… Chiu!… Não façam barulho!… Pareceu-me ouvir… Pois é! Não vou ter tempo de abordar o segundo ponto deste sermão, que era associar a vossa procura por sardinhos (para, alegremente, garantirem a continuidade da espécie), à inversa atividade dos sardinhos humanos, que caçam e moem as suas tão desejadas sardinhitas (de preferência com maminhas arrebitadas e bunda de pêra), sem se preocuparem se põem mais gente neste mundo que, sem me arrepender, há pouco adjetivei de desvairado. E porque é que não vou ter tempo de abordar esse assunto, perguntarão vocês em coro?… Não adivinham?… É por que vem aí uma traineira, porra!… Fujam, minhas queridas!
Vitorino de Sousa
Tavira, 26.06.19