Percurso

Autorretrato planetário

Breve relato das minhas aventuras neste planeta, sem censura nem vergonha nenhuma!

Nasci em Lisboa (na zona da Boa-Hora, Ajuda), sob o signo de Gémeos, em 1948, de um pai beirão marinheiro e de uma mãe lisboeta costureira. Quando chegou a hora de ir para a escola – e porque os meus pais tinham de trabalhar – passei a ficar em casa de uma tia materna porque, praticamente, não havia infantários. E se os havia, faltava dinheiro para os pagar. A tia vivia muito perto da nossa casa, na Rua da Aliança Operária, no primeiro andar de um prédio, em cujo no rés do chão havia (e continua a haver) uma agência funerária, da qual o meu tio era empregado. Quer isto dizer que passei a minha infância e parte da adolescência entre os artefactos daquela atividade. Por vezes, para terem sossego, punham-me a raspar a cera dos castiçais que tinham servido nos velórios. Isto acabou quando eu tinha 17 anos, porque a minha tia fartou-se de viver. O tétano foi o veículo de partida.

Quero agradecer-lhe aqui a sua pachorra por me ter aturado. E, principalmente, por me ter ensinado as primeiras letras, à janela do referido primeiro andar que dava para a rua, apontando-as nos letreiros dos eléctricos da carreira 18 (“Praça do Comércio” quando desciam; “Ajuda” quando subiam), enquanto eu emborcava colheradas de Farinha Amparo! Pouco tempo depois de a minha tia ter ido desta para melhor (como se diz com grande sapiência) o meu tio deu em motorista de táxi, e nunca mais o vi. Quanto a ele, quero agradecer-lhe a oportunidade que me deu de verificar que os cemitérios eram (e continuam a ser) um dos locais mais tranquilos que conheço. Principalmente quando estão vazios de gente viva.

Quando acabei a Instrução Primária, frequentei na Escola Preparatória Francisco de Arruda. Dois anos depois, o meu pai inscreveu-me no curso de Auxiliar de Laboratório da Escola Industrial Fonseca Benevides, em Santos-o-Velho, em Lisboa.

Tinha eu cerca de 12 anos, os meus pais entraram para sócios na FNAT (atual INATEL) com o intuito de passarmos as férias de verão a acampar no parque da Costa de Caparica. Depressa nos apercebemos de que o ambiente era salazarista – não podíamos andar de tronco nu dentro do parque; só depois de passar o portão a caminho da praia. No regresso à tenda, para almoçar, o porteiro não deixava passar ninguém em fato de banho. Aguentámos aquilo cerca de cinco anos; depois, passámos para o parque de campismo ao lado, do Clube de Campismo de Lisboa (CCL), onde só não se podia andar nu. De resto, tudo bem. O clube tinha um grupo de teatro, ao qual logo aderi, cheio de entusiasmo. Esta atividade durou até chegar o dia de ir para a tropa. A recordação mais forte desse período está relacionada com a peça “Mar”, de Miguel Torga, principalmente quando a representámos na Nazaré, porque a ação passa-se numa taberna daquela terra, frequentada por pescadores da frota bacalhoeira. No que toca a teatro, outras oportunidade surgiriam.

Quando chegou a hora de “assentar praça” (Julho de 1969), não dei o salto para o estrangeiro como alguns fizeram: cruzavam a fronteira, muitos deles clandestinamente, fazendo manguitos à Guerra do Ultramar e insultando a mãe de Salazar, que, coitada, não tinha culpa nenhuma, excepto não ter pedido ao marido para pôr o preservativo na noite em que, se calhar sem quererem, conceberam a criatura. Eu preferi ficar porque não tinha ninguém lá fora que me acolhesse. Saltos no escuro, não, obrigado. Meses depois da “inspeção” (avaliação médica para ver se estava tudo bem para o combate, não fosse a gente morrer na guerra com alguma doença estranha), vesti a minha farda de recruta na orgulhosa Escola Prática de Cavalaria de Santarém, suando imenso devido à canícula estival. A divisa daquele quartel era “Não somos melhores, nem piores; somos diferentes”. Portanto, segundo eles, eu passara a ser diferente. E era! De facto, não tardei a constatar que detestava aquela idiotice, para grande surpresa do meu pai que, entretanto, chegara a capitão da Força Aérea. Finda a recruta, deram-me a especialidade de enfermeiro – que eu pedira com o intuito de me refugiar no Laboratório de Análises do Hospital Militar da Estrela, para evitar a mobilização para o Ultramar. Finda a recruta, e depois de umas pequenas férias, marcaram-me alojamento num quartel em Campo de Ourique, para cumprir os três meses de formação da “especialidade” de enfermeiro. Assim, todos dias marchava, rua fora, com outros futuros “enfermeiros”, até ao hospital da Estrela. À tarde, o mesmo, para cima!

Quando fui chamado para defender o solo pátrio, que estava ser indecentemente profanado pelos “terroristas” de três das nossas colónias ultramarinas, eu já era funcionário, havia três anos, do Laboratório de Física e Engenharia Nuclear, em Sacavém, para onde entrei para fazer o estágio final do curso Auxiliar de Laboratório Químico, que, entretanto, terminara na Escola Industrial Fonseca Benevides, em Santos-o-Velho. Depois do exame, o diploma foi-me atribuído com a esmifrada média de 11 valores, porque eu nunca foi grande coisa a estudar o que não me interessa.

Ao fim de dezoito meses de continências, injeções e gente acamada, fui mobilizado para o Ultramar. A estratégia de ficar no laboratório de análises não resultara. Por “sorte”, apesar de o meu pai ter metido uma cunha para eu ser mobilizado para Moçambique (onde ele estava a cumprir a sua missão de serviço, acompanhado pela minha mãe, em Lourenço Marques/Maputo), fui escalado, como enfermeiro da Companhia de Cavalaria 3333 (outra vez os briosos Cavaleiros), para a pacífica, deserta, seca e poeirenta ilha do Sal, em Cabo Verde! O meu anjo da guarda teve pena de mim e livrou-me de apertos, pois o arquipélago estava em paz. Tratava-se apenas de defender o aeroporto internacional daquela ilha, ponto estratégico fundamental para voos comerciais de longo curso, principalmente da linha Joanesburgo/Londres.

Embarquei, em janeiro de 1971, no cais de Alcântara, no navio “Príncipe Perfeito”. O dia estava cinzento o chuvoso, circunstância que cancelou o desfile da companhia ao longo do cais e, à voz de comando “direita volver”, enfiar pela escada de portaló acima e entrar no navio. Largámos, finalmente, depois de muitos adeuses e choradeiras. Como estava temporal, vomitei até às Canárias. Três dias. Um horror. Finalmente chegámos a Bissau/Guiné para ali deixámos os batalhões que não tardariam a entrar em combate. Alguns foram logo emboscados na viagem para os quartéis, onde iriam passar dois anos. Alguns mancebos ficaram logo ali, engrossando o número de baixas daquela guerra absurda. Quanto a nós, audazes cavaleiros da Companhia 3333, depois de três dias em Bissau, voltámos ao mar rumo à ilha do Sal com o paquete todo só para nós!

percurso - Vitorino de Sousa

Algures no oceano Atlântico.


Quase dois dias depois, chegámos ao Sal com chuva e vendaval. Como a ilha não tinha cais de acostagem, sair do barco, descer a escada de portaló perigosamente oscilante, entrar num batelão de madeira que andava para cima para baixo ao sabor da ondulação agitada, e chegar a terra naquela banheira puxada por um pequeno rebocador enferrujado, decerto do século passado, foi uma aventura enjoativa e assustadora. Naquele deserto permaneci até janeiro de 1973.

percurso - Vitorino de Sousa

Aqui estou eu com a pasta dos aerogramas
– papel de carta (amarelo) que, depois de dobrado e colado, estava isento de selo –

O que amenizou a estadia foram os mergulhos nas água límpidas, pelo menos nos meses de verão, já que, nos restantes, a ventania era insuportável. Não chovia, claro. Apesar de o arquipélago se chamar Cabo Verde, verde era coisa que não se via naquela ilha: dois ou três oásis, à moda marroquina, num cenário lunar cor de Cola Cao. As poucas cabras que andavam por ali, esqueléticas, comiam, desgraçadas, as caixas de papelão que iam encontrando. Ora, como, na altura, eu praticava caça submarina, as lagostas vieram mesmo a calhar. Nesse tempo, eu ainda era capaz de disparar contra bichos. Contra pessoas, confesso,  nunca experimentei.

Seis meses depois de estar naquele bocado de deserto flutuante, meti férias e vim a Lisboa casar com a minha namorada e colega de laboratório. O que é extraordinário é que ela não se recusou a abandonar a emprego e a família, a casar e a partir para longe. O amor tem destas coisas. Voltei à ilha casadinho de fresco, na esperança de que os 18 meses que faltavam para a “peluda” (nome dado ao dia da desmobilização) não fossem tão frustrantes. Apesar de acompanhado pela futura mãe do meu filho mais velho (o Pedro nasceria cinco anos depois, em 1976), a experiência militar nunca deixou de ser uma inacreditável perda de tempo. Finda a comissão, regressei de avião sem enjoos (haja Deus!) despi a farda, deite-a para o lixo e regressei ao Laboratório.

ilha do sal - vitorino de sousa

Com a esposa, na praia de Stª Maria, no sul da ilha do Sal.
Faltavam sete meses para a peluda!

Nos anos que se seguiram cantei em coros (Públia Hortênsia, com Paulo Brandão, e Universidade Nova de Lisboa, com Luís Pedro Faro). Este maestro e amigo dizia que o meu timbre era de tenor, mas eu achava que era preciso fazer muito esforço para cantar essa parte das partituras. Nas notas mais agudas, saía um tanto  esganiçado. Não estava pra isso. Finquei o pé e entrei para o naipe dos baixos. Mais suave e não se ouvia tanto! Também brinquei com a cerâmica (artesanato urbano) e a escultura.

escultura - Vitorino de Sousa

Na exposição “Ocupação de espaços” na galeria de Câmara Municipal de Loures.

Quando se deu o “25 de Abril”, fazia parte do elenco da revista em cena no Teatro Maria Vitória: “Ver, Ouvir e Calar”. O teatro fechou nos dias seguintes ao reboliço e, quando reabriu, a revista chamava-se “Ver, Ouvir… e Falar”. A minha carreira como ator de revista, porém, não teve continuidade. Aquela, foi vez sem exemplo. Guardo as memórias do convívio com Henrique Santana, Barroso Lopes, Mariena, Vítor Mendes, Ivone Silva e o impagável e humaníssimo Eugénio Salvador.

teatro - Vitorino de Sousa

Pouco tempo depois, tomado pelos furores revolucionários, organizei um grupo de teatro com os colegas do laboratório onde trabalhava. Chamou-se Grupo de Teatro Tralha por razões óbvias: para levar teatro às populações das redondezas de Sacavém, eu passava a vida a carregar o meu Citroen Diane com a tralha necessária às representações. Durou cerca de 2 anos. Nessa fase, quando me dava na gana, escrevia poesia. Mas continuava a ser funcionário público, letra J.

Voltei às lides teatrais oferecendo a minha disponibilidade ao Teatro da Cornucópia, com Jorge Silva Melo e Luís Miguel Sintra. As melhores recordações desse tempo estão relacionadas com a participação, como figurante, em “Woyzeck”, de Georg Büchner, em 1978. No ano seguinte, ia morrendo a rir durante os ensaios a que assisti de “E não se pode exterminá-los?”, de Karl Valentin. Um gozo genial.

Nesse mesmo ano de 1979, a carreira teatral foi interrompida definitivamente. Um dia, estava eu a brincar com as palavras, quando olhei para o papel entalado no rolo da máquina de escrever (do laboratório!), e estava lá uma coisa estranha. Percebi depois que era um novo formato poético. Chamei-lhe “simbiose”. No ano seguinte, esse formato, explorado em 15 poemas, recebeu o Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores. O livrinho, publicado pela (extinta) editora Arcádia (coleção Licorne) no ano seguinte, chamou-se precisamente Simbioses.

Um dos elementos do júri desse concurso era Alberto Pimenta, um dos “rebeldes” das letras portuguesas. Fruto do nosso convívio, escrevi um texto completamente paranoico, que intitulei Abecedeta — O Enigma do Círculo Fechado. Só para ter uma ideia do desvario, a ação passa-se no país de Êta Silhueta-Doce, o Incompreendido, Salve-o Deus (que era um ditador desvairado), cujas letras do abecedário do idioma ali falado terminavam todas em “eta”! Enfim, uma alucinação que só a editora & Etc., poderia publicar. E publicou, corria o ano de 1983.

No ano anterior, onze anos depois de ter começado, o casamento acabou. Iniciou-se, então, uma fase em que andei por aí aos trambolhões emocionais. Não tinha onde cair morto!

Em 1986, reencontrei, num concerto no Palácio Foz, na Praça dos Restauradores, em Lisboa, aquela que viria a ser a mãe do meu segundo filho, Miguel. Digo “reencontrei”, porque já conhecia a rapariga, pois ambos cantáramos no referido coro “Públia Hortênsia”. Mal nasceu o Miguel, em 1988, deu-me a pancada da Astrologia. Foi forte. Não via outra coisa! Perguntavam-me as horas ou falavam-me de pontualidade e eu desatava a dissertar sobre Saturno. Não queria saber de fraldas e biberões. O que eu queria era Stephen Arroyo, Dane Rudhyar, Liz Greene e quejandos. Tornei-me um chato. Não admira que ela se tenha apressado a trocar-me por outro, mais atraente e atencioso. Separámo-nos antes de o Miguel fazer um ano.

Quando injectei os conhecimentos astrológicos na veia poética, escrevi o que viria a chamar-se Os 12 Estados do Ser. Uma dúzia de simbioses sobre os signos astrológicos e outra dúzia de transição entre cada signo. Esse texto, publicado pela editora Nova Fronteira (Rio de Janeiro) levou-me a atravessar o Atlântico pela primeira vez, para participar no lançamento do livro, no Rio e em S. Paulo. Para mim, que nunca tinha saído da terrinha, a não ser fardado, o Brasil passou a ser o top. Lá voltaria várias vezes, por várias razões. Durante a estadia em S. Paulo, radiante da vida, fui assistir a Congresso de Astrologia. Durante uma das sessões, ocorreu a ideia de escrever um livro de astrologia para crianças.

Já em casa, meti mãos à obra. Só que a escrita tem coisas estranhas: o texto começou a crescer, como um bolo com excesso de fermento. Cresceu tanto que, às tantas, já não podia ser para as crianças pequeninas, mas para as crianças que os adultos trazem dentro delas, normalmente mal tratadas. Assim surgiu a Crónica da Incrível História do Patinho.

Então, e as crianças de carne e osso? Para elas, meses depois, surgiu Os Amigos do Zodíaco a Caminho do Mar.

Em Lisboa, eu era, evidentemente, um frequentador assíduo da Casa do Brasil. Aí, um dia, um amigo brasileiro que trabalhava para a editora Pergaminho, propôs-me a escrita de um dicionário de astrologia. Com promessa de publicação imediata. Até os olhinhos se me luziram. Fiquei tão entusiasmado que satisfiz a encomenda em pouco mais de um mês. A editora cumpriu a promessa e o livro foi publicado. Todavia, meses depois, cancelou o contrato que tínhamos assinado. Porquê? Não faço a menor ideia. Algo de grave se deve ter passado. Nunca cheguei a saber. A coisa foi surpreendente, até porque a minha relação com o editor, Mário Moura, era excelente. Não foi decerto por o dicionário estar organizado de Z para A, por causa da mania de certas pessoas começarem por consultar as últimas páginas dos livros. Esse formato tinha sido aprovado pelo editor, que até achou muita graça. Em 2014, depois de revisto e aumentado (e com os verbetes na ordem correta), o Dicionário de Termos e Símbolos Astrológicos, foi reeditado com nova capa.

Neste período, no seguimento dos campos abertos pela astrologia, chegou o interesse pelos chacras (Sistema Corpo Espelho, de Martin Brofman) o que me permitiu juntar o “alinhamento de chacras” às minhas consultas de astrologia.

Em Dezembro de 1994, depois de quase três décadas de Laboratório, fartei-me. Perdi a paciência: meti os papéis para rescindir o contrato, borrifei-me na reforma e, duas semanas depois, precisamente no primeiro de janeiro de 1995, estava livre daquilo. Os meus pais não perceberam por que raio trocara eu a segurança de um emprego no Estado (naquele tempo era garantia de continuidade e, portanto, de segurança), pela atividade de astrólogo a tempo inteiro. Os meus filhos, as mães deles e outras pessoas, aceitaram a situação, assim como quem diz: que se há de fazer? E mais surpreendidos ficaram quando, em junho seguinte, decidi emigrar para Porto Seguro, Bahia, Brasil. Por altura da Páscoa fui conhecer o local, acompanhado pelo casal que me desafiara a acompanhá-los naquela aventura migratória, já que iam abrir uma cervejaria tipicamente portuguesa, com loiça de barro, galos de Barcelos e tudo. Afinal, o sítio que esses amigos tinham comprado não era em Porto Seguro (aí era a cervejaria), mas na estrada que segue para Arraial de Ajuda, depois de atravessar o rio. Excelente sítio, à beira-mar quentinho. Nessa viagem conheci a Rosa.

Regressei, vendi tudo o que tinha para angariar dinheiro para os primeiros tempos em terras de Vera Cruz e, em junho… ala! Foi um desastre. O dito casal separou-se assim que chegámos, a cervejaria foi à vida, o sítio foi posto à venda, pelo que deixei de ter apoio. Não consegui trabalho (a ler mapas astrológicos e a fazer alinhamentos de chacras) porque era inverno e não havia turistas. Dei algumas consultas em troca de um almoço. Para compor o ramalhete, falhei a renovação do visto na Polícia Federal, pelo que passei a pagar uma multa diária. Quanto à Rosa, meteu-se num ônibus para o Rio, garantindo que ia procurar uma casa para nós. Nunca mais apareceu nem quis saber de mim, coitadinho. Fiquei na pior das merdas! Restou-me esperar pela data da viagem de regresso, marcada para setembro, balançando-me numa rede à beira-mar, deprimidíssimo. Pensava no que iria fazer da vida, enquanto petiscava frango à passarinho regado com uma Brahma bem fresquinha. O cenário era aliciante e invejável; a disposição não podia ser pior.

Quando cheguei a Lisboa em setembro de 1995 (não sem antes pagar, na Polícia Federal do Recife, a multa por estar ilegal) fui viver para casa dos meus pais. Receberam-me como Deus recebe os filhos pródigos! Abençoados. Aceitaram emprestar-me dinheiro para comprar um computador em segunda mão, para poder calcular os mapas astrológicos e escrever livros. Ah! E roupa de inverno, dado que só tinha calções, chinelos e t-shirts a pedirem lixo. Tiveram de me emprestar dinheiro, porque eu não tinha. Regressara do Brasil praticamente com a carteira vazia e, na semana seguinte à chegada, o IRS levou-me o que restava. Depois de tudo o que passara no Brasil (que dava um romance de faca e alguidar), chegava a cereja no topo do bolo! Fiquei com mil escudos!

A tarefa, agora, era tornar-me independente financeiramente. Foi relativamente fácil, com cursos e consultas de astrologia. Menos de um ano depois, já estava a viver num apartamento de uma amiga, em Campo de Ourique. Quando me mudei para lá, disse-lhe: “Bom, não estás a pensar vender o apartamento, pois não?”. “Não”, disse ela. Como a rapariga gostava de imitar os cata-ventos, poucos meses depois, estava a pedir-me para sair, porque tinha posto o apartamento à venda. Depressa encontrei um T0 em Cascais, em cuja sala, de dimensões generosas, podia dar cursos e seminários. E assim foi. Não tardei a comprar, em módicas prestações, uma “acelera” de 50 cc., para as minhas voltinhas. Nessa altura, um amigo ajudou-me a criar o meu primeiro site e a conceber um sistema novo de alinhamento de chacras — A Via dos Chacras. Mas a coisa não medrou.

Em 1998 deu-me para escrever acerca dos conceitos astrológicos camuflados nos 12 poemas do capítulo central do livro Mensagem, de Fernando Pessoa. Dez anos antes, no início dos meus estudos sobre a matéria, assistira a uma conferência de Paulo Cardoso, no Quíron – Centro Português de Astrologia, de Flávia de Monsaraz. Nessa noite fiquei a conhecer o que, astrologicamente, se escondia nesses 12 magníficos poemas: Fernando Pessoa (que sabia imenso do assunto e criara até um heterónimo para a sua veia astrológica: Raphael Baldaya), abordando a saga dos Descobrimentos portugueses, codificara neles os  signos zodiacais, sem ninguém dizer nada a ninguém. Quem quisesse que descobrisse. Foi preciso esperar décadas até que Paulo Cardoso se apercebesse da coisa e publicasse um livro sobre o assunto. Assim, após 10 anos de estudos astrológicos, atrevi-me a fazer o mesmo. Esse trabalho não está publicado. Chamei-lhe A Astrologia nos doze poemas de “Mar Português. Aguarda oportunidade de publicação.

Entrou o novo milénio e, em 2001, como resultado do estudo do espantoso livro Um Curso em Milagres, entreguei a minha vida, como se costuma dizer. A intenção era que a versão “cinco estrelas” de mim mesmo (que, segundo creio, existe algures), fizesse da minha existência o que bem entendesse. As decisões pessoais não davam grandes frutos. A partir daí, comecei a lidar melhor com esta coisa estapafúrdia de estar na Terra. A prova foi que, pouco tempo depois (Outubro 2002), descobri os livros de Kryon – aquele “anjo” do Serviço Magnético. Após ter traduzido alguns deles, logo os disponibilizei no meu site de então, chamado “Escola do Perdão”, cuja sigla era “EdP – uma outra energia”! Foi então que me ofereci, superiormente, para levar aqueles conhecimentos aonde fossem necessários. E acrescentei, convictamente, que – já agora – gostaria de divulgar informação inédita, e não somente aquela que me enviavam por email ou eu próprio retirava de outros sites. A cocriação resultou em cheio: três meses depois, estava no Brasil (Santos) a dar palestras, cursos… a canalizar a vibração de Kryon! Foi o início de uma fase de trabalho que me levou também a Fortaleza, S. Paulo, Curitiba, Campinas, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Dez anos se tinham passado desde a primeira visita àquele país. Mas como a paixão continuava, não me poupava a esforços. Houvesse dinheiro para a viagem, e lá ia eu. Nessa altura, duas vezes por ano.

Em 2002 comecei às voltas com uma carrada de 72 sextilhas: diálogos poéticos entre o “Leigo Que Fala Alto” e o “Sábio Que Fala Baixinho”. Todos Em Nome da Mãe! Na altura, o amigo António Rosa, da editora Anjo Durado (de quem falarei daqui a pouco) não manifestou interesse em publicar este trabalho. Mas eu gostava tanto dele que, em 2007, pedi-lhe uma edição de autor. Ou seja, sem a chancela da editora na capa. Ele acedeu e mandou imprimir. Paguei a edição, recebi os livros e vendi-os na banca dos meus trabalhos de sala. Presentemente estão esgotados e não fiz reedição.

Foi nesta altura que surgiu a Biodanza, num workshop de fim de semana no pavilhão do “Dramático” de Cascais. Num dos “intensivos” realizado em Espanha (Arenas de San Pedro) no ano seguinte, conheci uma amiga que, mais tarde, viria a contaminar-me com o vírus da BTT (bicicleta todo o terreno). E dado que começámos a namorar, as minhas frequentes viagens a Madrid proporcionaram-me a oportunidade de, nas horas vagas, aprofundar o estudo dos Florais de Bach, que conhecera superficialmente anos antes. Desse estudo acabou por resultar o livro Florais de Bach – Gotas para a Alma. Foi publicado pela editora Estampa e continua nas livrarias, embora o acerto de contas seja mais difícil do que fazer passar o TGV no túnel do Rossio. Este convívio com a namorada merengue proporcionou-me uma certa fluência na língua castelhana, a qual, posteriormente, me permitiu trabalhar como “instrutor espiritual” (ora, pois!) fora de Portugal. Na Argentina, visitei Buenos Aires, Rosário e Resistência. Em Espanha, Bilbao e Madrid. Em Portugal, foi de Faro a Ponte de Lima. Foram cerca de três anos em bolandas, de mala na mão, de esperas nos aeroportos, de horas de tédio nos aviões e gente a olhar para mim com o olho a brilhar e a querer abraçar-me porque “ele canaliza Kryon”. Só parvoíces!

Foi isto durante 2004, 2005 e 2006. Um dia, em setembro desse ano, decidi fazer uma corridinha lenta na praia do Guincho, (que alternava com os passeios de BTT ao Cabo da Roca e Rampa da Pena, Sintra, treinando para fazer o Caminho de Santiago), De repente, fui literalmente fulminado pela ideia de um texto que logo arrebitou o meu entusiasmo. Para não deixar arrefecer a excitação, atirei-me ao trabalho nesse mesmo dia. Cinco meses depois, em fevereiro de 2007, estava pronto. Mas ficou “na gaveta” até 2011, altura em que seria publicado em edição de autor, com o título Os Dez Desmandamentos. Usei este termo para referir os “desmandos” das pessoas como eu e você, com base nos dez mandamentos da Igreja Católica. Mas, como gosto de transgredir, não segui a ordem estabelecida: o texto começa no 7º mandamento (Não roubarás) e acaba no 9º (Não desejar a mulher do próximo)!

Voltando um pouco atrás: em 2004, estava eu no Brasil, recebi um email de um senhor chamado António Rosa, responsável pela editora Angelorum Novalis, mais tarde renomeada Anjo Dourado. Dizia ele que topara, no meu site, com um texto por publicar (já nessa altura não tinha pachorra para editoras, que não ligavam nenhuma aos originais que lhes enviava), com o título Manual da Leveza. Respondi-lhe que sim, nada contra. Só não compreendia aquela pretensão, dado que o texto estava disponível para descarregamento gratuito há imenso tempo. Respondeu que isso não interessava nada, que era um excelente escrito, que queria publicar, etc. Sendo assim, para quê contrariar. Publique-se! E publicou. A minha relação com António Rosa estreitou-se, ao ponto de ele me publicar, entre 2004 e 2007, 17 livros, de várias ordens e estilos! Ou seja, arredondando, quatro livros por ano. Um por trimestre. Mas não há fartura que não dê em fome, como dizem os pessimistas: quando, cerca de dois anos depois, a editora faliu, todos esses títulos deixaram de ter distribuição nas livrarias. Ou seja, hoje, é como se não existissem. Presentemente, alguns desses textos estão em versão PDF para quem quiser (por apenas €5). Quanto ao livro em questão, quando se esgotaram os exemplares que recolhi aquando do fecho da editora, resolvi fazer nova edição, revista, aumentada e com outra capa. Uma verdadeira operação cosmética.

Andava eu nestas andanças, produzindo livros como uma tasca produz bifanas, quando começou a minha relação/parceria/fusão com Esmeralda Rios. Na verdade, o primeiro contacto ocorrera em 2001, por ocasião de uma consulta de astrologia, no Porto, que a  sogra dela marcara sem lhe dizer nada. Ficou fula! Naquela altura, não queria nada com astrólogos, tarólogos, etc. Mal ela sabia que, no futuro, iria partilhar a vida com um astrólogo (agora na reforma) e ter uma taróloga como grande amiga . Isto para já não falar no nosso Tarot de Anura que surgiria em 2012. Mais: no final dessa consulta no Porto, dei-lhe um frasquinho com florais de Bach. Vim a saber depois (numa noite em que a TV não estava a dar nada de jeito) que nem lhe tocou; foi direitinho para o lixo. Como não se deve dizer “desta água não beberei”, mais tarde ela esteve na base da criação dos Florais de Anura. Algum tempo depois dessa “célebre” consulta (nos finais de 2006) reencontrámo-nos em Aveiro,. Meses depois, em meados de 2007, juntámos os trapinhos e ela mudou-se para o meu apartamento em Cascais.

Nesse ano, num passeio primaveril, passámos pela região de Dornes, e eu aproveitei para lhe mostrar uma casa na aldeia de Rio Cimeiro, onde me entregara a retiros de silêncio, em 2002, sugeridos por André Louro de Almeida. Dada a beleza do local, fizemos uma meditação no meio do pinhal, e logo surgiu a ideia de arrendar ali uma pequena casa, para fins de semana. Na aldeia, quase deserta, aproveitámos para perguntar a uma senhora, que estava a conversar com uma vizinha no meio da rua, se sabia de alguém ali com uma casita para alugar. Ela tinha. Bingo! Mas como pagar duas rendas não era confortável, ainda nesse mesmo ano de 2007 decidimos sair de Cascais e passar a residir no Rio Cimeiro. Por não termos patrão a quem dar satisfações, nem livro de ponto para assinar, a coisa era perfeitamente viável.

Ali ficámos até ao ano seguinte, altura em que nos mudámos para uma casa maior, um pouco mais abaixo, na aldeia de Vale Serrão. E ali nos mantivemos durante vários anos. Esta prolongada estadia apenas foi interrompida, pelo dois anos em que vivemos em Vila Nova de Cacela, no Algarve. Uma das vantagens era estarmos a 12 km de Espanha, onde íamos com frequência, para respirar os desanuviados ares da Andaluzia. A desvantagem era fazer, na primeira semana de cada mês, 600 km (ida e volta) para trabalhos em Lisboa e, na terceira semana, 1400 (ida e volta) para trabalhos no Porto! Eu conduzia acordado, falando com os meus botões; a Esmeralda falava com os botões dela a dormir, com o “Morfeu” (nome dado ao apoio de cabeça) à volta do pescoço. E assim vivemos até 2018, passando por experiências fundamentais… e inacreditáveis para o comum dos mortais. Sobre elas faço silêncio. Nesse ano de 2018, para cúmulo da surpresa, foi-nos sugerido que “separássemos as águas”. Foi o que fizemos, com grande sofrimento e desencanto. Mas de todos aqueles anos de saudável convivência resultou a publicação de vários livros. O Livro de Anura é um bom exemplo. Outro é A Arte da (Co)Criação.

Pela minha parte, durante o conturbado período de “separação da águas”, fui trabalhando num novo livro que intitulei Operação Desatinos, que foi publicado em 2019.

Entretanto, passei a viver sozinho em Tavira, sem fazer a menor ideia de que estava para chegar a Covid-19, que pôs tudo de pantanas e me proporcionou a segunda maior crise da minha vida, por causa do descalabro financeiro. O ano de 2020 foi o inferno. Em 2021 consegui recuperar uma parte da estabilidade, mas chegou para produzir o quarto livro de poesia: Da Minha Musa Menina. Também criei a Lirateca e a Associação de Gestos Astrolo-Poéticos e voltei a organizar Concurso de Poesia “Simbioses – Brincando com as Palavras”Muito perto do Natal deste mesmo ano, foram publicadas as Memórias de um Incansável Viajante

Já em 2022, por alturas da Páscoa, saiu a público A Astrologia nos poemas de ‘Mar Português’ in ‘Mensagem’, de Fernando Pessoa. No primeiro semestre deste ano surgiram os três heterónimos.


Todos os livros citados estão reunidos nos botões Prosa e Poesia.

 

 

No princípio (muito tempo depois do Verbo!) eu era assim:

Vitorino de Sousa

 

Já fui assim:

 

Agora estou assim:

Vitorino de Sousa

 

Um dia estarei assim:

(espaço para a foto no caixão)

O epitáfio será:

Aqui jazo, finalmente, na horizontal, livre e repousado,
tal como sempre quis em vida. Mas nunca o consegui,
devido à sensação de que a este mundo não pertenço.

Terminado o tempo, tão longo, que me foi reservado,
para outro lado (não sei se alto, não sei se baixo) parti.
Oxalá nesse lugar venha a sentir que a ele pertenço.

Um poeta jovial (embora morto), serve em todo o lado,
tenha chão pra pôr os pés, esteja no espaço suspenso,
ou somente se mantenha num qualquer céu elevado.

Um poema autobiográfico (ilustrado em vídeo) no formato ‘simbiose’


Vitorino de Sousa