Sermão aos bodiões

Veneráveis bodiões:

Por não querer voltar a incomodar os carapaus e as sardinhas – ambos já se dispuseram a ouvir-me – peço-vos o favor de me darem um pouco atenção. E porque é que apelo a vocês, que ninguém vê a estrebuchar nos balcões das lotas e, depois, sossegados, deitadinhos lado a lado, de olho vidrado, nas bancas dos supermercados? É porque pretendo homenagear a singeleza da vossa espécie, que tem passado despercebida. Podia ter escolhido os chocos, as fanecas, os salmonetes. Não. Hoje, é diante dos bodiões que pretendo desabafar.

Desabafar o quê? – perguntarão vocês, em coro desafinado porque não ensaiaram?

Pretendo desabafar o facto de imensos irmãos meus continuarem a vagar por esses ares, não repimpados num tapete voador, mas pairando numa bolha de idiotriões.

O que é isso de idiotriões? – perguntarão vocês, agora num coro mais aceitável por ser a segunda vez.

Idiotriões, meus amigos, são umas partículas da matéria, imensamente minúsculas, recentemente descobertas por um cientista norte-coreano, na zona mais íntima dos eletrões.

Ah! Que interessante! – respondem vocês boquiabertos mas sem se engasgarem.

Pois é, meus amigos. Mas o que interessa aqui não são os idiotriões propriamente ditos, muito menos a parte dos eletrões onde eles escolheram viver; interessa que os meus irmãos humanos se deliciam com as suas aéreas navegações idiotriónicas, por estarem convencidos de que, assim, vendo as coisas de cima, vêem melhor. Têm até o desplante de dizer que não vêem a folha, nem sequer a árvore, como acontece com os espertalhões; olhando cá p’ra baixo, desde o assento etéreo onde julgam que subiram (mas onde memória da sua vida se não consente), garantem que vêem a floresta interna! Todavia, pairam iludidos porque o que eles vêem é as coisas do avesso!

Esta afirmação poderá parecer-vos categórica, proferida por quem sabe – de fonte segura – o que está dizer. Que não vos pareça, pois tal não é verdade. A minha fonte vai caudalosa, mas não segura. Portanto, é apenas a minha impressão. Seja como for, verdadeiramente grave é que os meus irmãos humanos não se apercebem de que a forma como vêem as coisas, nada tem que ver com a realidade que já de si é uma ilusão. Estão, portanto, duplamente iludidos. Mas eu compreende-os. E, porque sou uma pessoa muito espiritual, até lhes perdoo.

A sabedoria oriental (e um bocadinho da ocidental) manda que se faça apenas uma coisa de cada vez. Estes meus irmãos humanos, porém, como seria de esperar, não ligam nenhuma a nenhuma espécie de sabedoria, e violam a sensatez fazendo duas coisas ao mesmo tempo: 1) passam metade dos dias a olhar, embora não vejam o mais importante, e 2) passam a outra metade dos dias a orgulharem-se das conclusões que tiraram acerca daquilo que viram. Tamanho esforço, feito com tamanho empenho, impede-os, naturalmente, de prestar atenção ao que mais interessa.

É verdade, meus amigos. Pela minha parte, muito lhes discursei, cheio de boas intenções, quer pessoalmente, quer de longe, através de escritos em prosa e – já que a cegonha me largou num país de poetas – em poesia. “Em Roma sê romano”, tal como os bárbaros das estepes ouviam dizer, ainda antes de lá chegarem.

No muito que lhes disse (aos meus irmãos, não aos bárbaros das estepes, evidentemente), encontraram eles bastos motivos de riso e de galhofa, que os desenfadou da dolorosa pasmaceira quotidiana. Não retiveram, porém, o que poderia ter extirpado os furúnculos, alguns deles bastante tumefactos, que perturbavam as suas existências. Que esse era o meu objetivo, porque o sofrimento sem nexo sempre me fez imensa impressão. O que lhes tenho oferecido por escrito, mais recentemente, despertou neles (salvo raras excepções) uma coisa tão comum como pulgas num cão vadio: indiferença! Pior a emenda que o soneto, como se costuma dizer, embora eu não escreva nesse formato poético, mas noutro.

Outros homens e mulheres de boa vontade (a quem está destinada a paz na Terra, segundo as Sagradas Escrituras), também têm dito as mesmíssimas coisas que, durante décadas, eu disse e repeti. Não sei se os meus irmãos adoradores da suspensão idiotriónica lhes têm prestado atenção. Nem me interessa. O que uns dizem e os outros ouvem, sejam quais forem as palavras utilizadas, não me interessa nada, porque cada cabeça sua sentença e cada ouvido sua percepção. E eu cheguei a uma idade em que já não tenho pachorra nenhuma nem para cabeças nem para sentenças.

Este meu desabafo, amigos bodiões, poderá parecer-vos levemente enigmático. Mas eu sei que, apesar da enganosa modéstia da vossa espécie, vocês perceberam o que eu quis dizer. Postas estas considerações, nas quais me embrenhei apenas para aquecer a verborreia, está na hora de avançar. A maré está quase na preia-mar e, se não me despacho, fico com as sandálias ensopadas e a fímbria do manto humedecida. Portanto, o melhor é revelar-vos o verdadeiro motivo do meu sermão:

 

Os meus irmãos humanos, vivendo em suspensão idiotriónica, indignam-se com as inúmeras guerras que certos idiotas poderosos promovem e mandam os outros fazer e nelas morrer. Contudo, pouco se incomodam com as guerras que, levando a fome, a miséria e a inquietação às suas próprias células, abrem profundas crateras no chão das suas vidas. Trata-se da fábula “Olhar só para fora”, que o grego Esopo tencionava escrever. Mas não chegou a escrever porque um grupo de cidadãos com mau feitio, (talvez por causa das profundas crateras no chão das suas vidas) resolveu atirá-lo do alto de um rochedo.

Todavia, estas guerras internas, que criam desvairadas situações nas vidas dos meus desarrumados irmãos, não me dizem respeito. Já lá vai o tempo em que muito opinei acerca das problemáticas dos seus quotidianos. Por isso, vou abordar o tema da guerra militarizada que, por ser uma questão global, afeta toda a gente, esteja em paz ou em guerra interiormente. Vocês deixem-se ficar aí tranquilos; se chegar algum pescador eu aviso.

A primeira guerra surgiu apenas um minuto depois de o Homo sapiens ter aparecido neste mundo, ainda por cima, para mal dos nossos pecados, numa data de sítios ao mesmo tempo, coisa que muito intriga os arqueólogos. Eu não sei o que é que vocês pensam sobre o assunto – nunca combinámos debater a questão – mas a mim dá-me a sensação de que alguém andou por aí a pulverizar montes e vales com as sementes daquilo que haveria de gerar gente de todos os géneros e feitios. Bom, o termo “géneros” poderá sugerir uma variedade considerável, mas, afinal, são só dois: o masculino e o feminino, embora com bastantes variantes; quanto aos “feitios” também são dois – o bom feitio e o mau feitio – sendo que, dado o historial, estes são muitíssimo mais fáceis de encontrar do que aqueles, como Esopo pôde constatar.

Apenas um minuto depois de o Homo sapiens ter aparecido? Tão rápido? – perguntam vocês, agora em perfeito uníssono, tal como as sardinhas no sermão anterior.

É verdade, meus amigos. Um minuto foi o tempo que demorou até que um Homo muito pouco sapiens olhasse para o quintal do vizinho e sentisse que, dentro de si, invisível, tinha um sistema que gerava emoções. Vocês, meus amigos, tanto quanto se sabe, não dispõem de tão magnífica peça psicológica, mas gostarão de saber que, na comunidade humana, muita gente lhe chama “corpo emocional”, o que prova, novamente, que o invisível existe mesmo. Digo “novamente” porque essa evidência já vem a ser provada, anualmente, através da procissão do Corpo de Deus, que nunca ninguém viu. Ora, quando o dito Homo muito pouco sapiens percebeu que tinha um gerador de emoções dentro de si, logo reparou que ele reagia, com imensa facilidade, à ambição e à cobiça. Vai daí, pegou na moca e, aos berros por S. Jorge, investiu que nem touro enraivecido, disposto a esmigalhar o crânio do proprietário do terreno ao lado e o dos seus familiares, a fim de aumentar o seu poder sobre a região. E esmigalhou.

Antes das mocadas, porém, os atacados (que também tinham o referida coisa emocional), sentiram, não ambição e cobiça, mas outra coisa tão ou mais mais inquietante: medo!

O ataque deve ter dado grande satisfação e proveito ao atacante porque, nos milénios seguintes, tem vindo a repetir a cena incessantemente. E continua. Só que, agora, mobilizou uma data de gente para atacar por ele, criando aquilo a que se dá nome genérico de exércitos. Portanto, queridos bodiões, os exércitos existem por causa da ambição e da cobiça e, invertendo a carta deste Tarot Macabro, por causa do medo. Toda a gente decente continua à espera que a humanidade saia da pocilga fedorenta em que preferiu morar – sim, porque se trata de uma escolha – para que, finalmente, deixe de ter necessidade de se defender.

‘Tás parvo ou quê!? – exclamarão vocês num tom interrogativo – Afinal, visto daqui de baixo, parece-nos que tu é que estás em suspensão idiotriónica!

Calma, gente! Sem qualquer tipo de orgulho (que é outra emoção que o atacante sentiu quando, no quentinho da gruta, explicou à tribo como tinha esmigalhado o crânio dos vizinhos), devo afirmar que não acho graça nenhuma a essa coisa dos idiotriões. Tenho a certezinha absoluta de que, um dia, daqui a setecentos séculos e meio, mais ou menos, a malta vai perder a mania de atacar. Não posso adiantar se, nessa altura, viveremos na Paz do Senhor, porque não consigo antecipar que tipo de Senhor será venerado então. Paciência. Se se verificar que, afinal, estou enganado, podem crer que todos estaremos metidos num grandessíssimo sarilho.

Pronto! Obrigado, amigos, pela vossa atenção. Sinto-me muito mais aliviado, depois deste desabafo. Eu sei que nada disto vos diz respeito, porque o vosso mundo não é afligido por este tipo de calamidades. Vocês são uns privilegiados por não terem de se preocupar com a aproximação das traineiras, como acontece com outras espécies. Já não é mau. Quando o perigo vem apenas dos pescadores à linha, que vêm aqui à procura de jantar, porque já não podem aturar as mulheres deles ou tão só porque não têm mais que fazer, é possível viver relativamente descansado. Pela minha parte, preferia ver esses pescadores sentados aqui, a desabafar para os seus peixes preferidos, sem cana, anzóis e minhocas. Mas, como disse o cientista norte-coreano que descobriu os idiotriões, decerto por estar muito cansado e já não dizer coisa com coisa: cada um é como cada qual. Todavia, como Kim Jong-un não percebeu o que ele quis dizer com aquilo e até lhe pareceu uma ofensa, o pobre cientista está a cumprir a pena de escrever cinquenta milhões de vezes: “Nunca mais ofendo a inteligência do Supremo Líder”.

Vocês não liguem, que isto algum dia nos há-de passar!

Até à próxima.