Sermão às fanecas

Formosas fanecas:

Não se admirem por ter chegado a vossa vez de ouvirem os meus lamentosos desabafos. Agora deu-me p’ra isto! Os desabafos que continuam à espera que eu os desabafe, são tantos quantas as espécies de peixes que vivem nos mares deste país realmente ímpar. Eu não sei quantos são os meus desabafos, nunca os contei, tal como nunca contei as espécies de peixes que andam por aí. Muitos foram os anos em que, em cursos, seminários e palestras, me dediquei a levar um pouco de lucidez a quem se sentisse precisado dela. Não é que eu tivesse muita lucidez para partilhar, a maior parte dos que me ouviam é que pensavam que não a tinham; se tivessem lucidez, tinham ficado em casa a dizer: Para quê perder tempo a ouvir um gajo que faz chover em zonas da minha mente que já estão molhadas? A coisa chegou ao ponto de, um dia, eu ter confessado à plateia: O dia mais feliz da minha vida será quando eu marcar uma palestra e não aparecer ninguém: é sinal de que já sabem o que eu tinha para vos dizer! Não cheguei a viver esse “dia mais feliz da minha vida”. E já o não vou viver, porque deixei-me dessa vida.

Há pouco, referindo-me a este cantinho à beira mar plantado, afirmei que ele era realmente ímpar. Na verdade, mais nenhum país se chama Portugal. Não acham extraordinário, queridas fanecas? Devíamos estar orgulhosos, inclusive vocês que nadam nas águas territoriais lusitanas. Todavia, um bocado de terra, pequeno ou grande, plano ou montanhoso, seco ou húmido, fértil ou estéril, com eucaliptos forasteiros ou árvores autóctones, só é país por causa das pessoas que lá vivem. Logo, o termo “ímpar” tem de se aplicar, não ao país, mas à população. Assim, temos uma população ímpar. E, de facto, não há memória, nos anais da Terra, de gente mais ímpar(ável) no que toca a fazer aqueles disparates que a experiência já demonstrou que não deviam ser feitos, muito menos repetidos. Mas, pronto, nós somos assim e, pelos vistos, a maioria não pretende deixar de ser. Contudo, deixar de ser como somos seria relativamente fácil.

E como é que vocês deixariam de ser como são – perguntam vocês, minhas amigas, porque se interessam por quem vos saboreia escaladinhas e com molho à espanhola?

Bom, nós poderíamos deixar de ser como somos, recorrendo a um estratagema que é mais velho do que fazer cocó de cócoras: deixarmos de considerar que os problemas dos outros nos dizem respeito!

Como assim? – voltarão a perguntar vocês, querendo aprender o que nós esquecemos há que tempos?

Oiçam: quem, armado em salta-pocinhas, galga para dentro do filme de vida deste e daquele, acaba por garantir que os problemas deles devem ser resolvidos desta e daquela maneira. O problema é que sobre Portugal desceu um escadote. É pequenino mas funciona (tem só três degraus), porque nós, humildes, contentamo-nos com pouco: o primeiro degrau é o do mexerico/alcovito, o qual acaba por evoluir para a intriga (2º degrau), em cuja base está a inveja, que é 3º degrau. Portanto, a inveja é o ponto mais alto da coisa, que se conquista espetando uma bandeira e tirando uma selfie.

Queres tu dizer que os portugueses sofrem de inveja? – perguntam vocês, estupefactas.

Não, minhas queridas. Isso seria demasiado mau. Os povo português alcovita (1º degrau), intriga sobre a vida dos outros (2º degrau) e acaba invejando (3º degrau) porque, segundo me parece, desconsidera o que se passa na sua própria vidas. Nela não se passa grande coisa, é verdade, pois a falta de educação e a iliteracia vieram para ficar. Mesmo assim, o pouco que se passa recebe uma considerável indiferença. O quadro só se altera quando começa a correria para os hospitais. Ora, não se passando grande coisa por dentro, é claro que o pessoal vira-se para fora. O curioso é que, embora lado de fora haja algumas coisas relativamente interessantes, a maior parte prefere as que não têm interesse nenhum: mas concretamente as que ocorrem na vida alheia. Portanto, os portugueses não sofrem de inveja, sofrem é de solidão. Solidão severa, como se classificam os anos de seca irremediável. Daí as mentes gretadas. E empoeiradas, quando sopra a ventania.

Quê?… Acham que o meu desabafo está ficar muito escuro? Fanequinhas queridas! É perfeitamente natural que esteja a ficar escuro. Os desertos deste planeta são inóspitos mas têm muita luz, pelo menos de dia; já os desertos interiores permanecem na obscuridade, seja dia ou seja noite. Sabem porquê? Porque “Em cima como em baixo”! Grande verdade esta, quer o “baixo” seja o nível terreno e o “alto” sejam os céus; quer o “alto” seja o nível terreno e o “baixo” sejam os fundos da psique. Seja como for, nós, humanos, estamos sempre no meio, entre uma coisa e outra. Também vocês se nadaram para o fundo às tantas não vêem nadinha. Portanto, a menos que o indivíduo seja mineiro ou mergulhador, não convém descer muito para evitar tropeções e caneladas (no caso de o “baixo” ser o nível terreno), desorientações e faltas de ar (no caso de o “baixo” ser as profundezas da psique). É um princípio básico da vida, que os meus irmãos lusitanos ainda não reconheceram. Muitos deles nem precisam que os mandem (ou empurrem) para o fundo; eles próprios tomam essa estranha iniciativa. Isto verifica-se, inclusive, no caso daqueles que se fartam de referir a Luz de “cima”, convencidos de que Ela, por si só, é suficiente para acabar com a escuridão de “baixo”. Ou seja, na opinião deles, a Luz chega ao mundo tomado pela estupidez humana, e … puf … a bicharada, física e extrafísica, foge espavorida!

Involuntariamente, eu também propaguei essa leviandade durante anos; só que, hoje, depois de ter experimentado muitas situações incompreensíveis à razão humana, nasceram-me muitas dúvidas. Essa é um das razões por que preciso de desabafar. É natural que um ser humano, cheiinho de boa vontade, como é o meu caso, tenha este tipo de dúvidas, ao saber como são insondáveis os caminhos do Senhor e da Senhora. Resumindo: se bastasse à Luz chegar e … puf … Glória a Deus nas Alturas, a vida no mundo já se teria mostrado mais leve e esperançosa para milhões de pessoas, portugueses incluídos. Pode ser que sim; a mim não me parece. Mas aceito que esteja a precisar de mudar as lentes do meus óculos espirituais.

Bom, se vocês, minhas amigas, acham que este meu desabafo está a ficar deprimente, posso garantir-vos o seguinte: ele há coisas que, temperadas com um pouco de tolerância e uma pitada de compaixão, podem ser consideradas positivas. Se não reparem:

Como a natureza é sábia, a solidão dos portugueses é compensada com a sua generosidade: quanto mais os outros são atingidos por calamidades, provocadas pelas poderosas forças da natureza ou pelas não menos poderosas forças da estupidez humana, mais generosos ficamos. Os média, sabendo que nós somos um rebanho de lamechas de cabecinha ao lado, à procura de um pastor e de um cão rosnador que nos mantenha arrebanhados, esforçam-se por mostrar a criança cadavérica, o velhinho com o olhar perdido, a mulher desesperada com as lágrimas a sulcar o pó acumulado na cara, junto da sua casa que ardeu no incêndio, os corpos a boiar nos terrenos alagados pelas inundações ou no Mar Mediterrâneo, o sangue a escorrer nas paredes ou em poça no passeio depois de um atentado à bomba, etc. Nada a dizer. Os órgãos de comunicação, para terem quem veja e leia o seu trabalho, aperfeiçoaram a técnica de desequilibrar o nosso sistema emocional. E quanto mais desequilibrado ele estiver, mas fácil se torna desequilibrá-lo ainda mais. Uma espiral macabra, descendente, em direção às catacumbas da psique, onde já nem se pode acender uma velinha porque oxigénio é coisa deixou de existir. Portanto, nós somos generosos para os outros (e ainda bem; pelo menos que alguém que beneficie da situação) mas somos muito pouco atenciosos para nós próprios. Com base nesta percepção, cheguei a uma conclusão inquietante: nós somos um povo católico que atende ao “ama os outros”, mas não ligamos peva ao “como a ti mesmo”! Pondo o burro a rodar à volta da nora das perguntas, levanto as seguintes questões:

  • Como é que um ser embebido em solidão pode amar a si mesmo?
  • Como é que, não sabendo amar a si mesmo, pode amar os outros?
  • Como é que, não sabendo amar os outros, pode ser generoso?

Uma situação do tipo pescadinha de rabo na boca, queridas fanecas! É por isso que andamos tontos. Nem haveria necessidade de bebermos uns copos e irmos para as estradas matarmo-nos uns aos outros. A código da estrada devia receber uma adenda: “Se sofre de solidão, não conduza”. Este seria o remédio para termos ruas e as estradas seguras.

Enfim, os portugueses têm as suas taras, mas, no fundo, são boa gente. Quanto a serem boa gente à superfície… bom… adiante.

Adeus, minhas lindas, portem-se bem e fujam da redes.