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Autorretrato planetário de Vitorino de Sousa
Se estás a ler num telemóvel,
põe-o na horizontal

 

O autor e a Carlota a dizer adeus

 

Prelúdio

Antes de eu nascer estava tudo bem, nas suas posições.
Minguava, porém, o tempo disponível para ficar lá fora.
Vida e Silêncio eram, então, as minhas únicas funções,
como tinha sido quase desde sempre. Todavia, agora,
surgiam várias propostas de destinos e soluções,
propostas e defendidas por uma voz sedutora,
que falava de mansinho mas sem me dar explicações.
Aceitei o destino eleito e, em menos de uma hora, l
á vim eu, do Céu para esta Terra, nu, aos trambolhões.

 

Nota de esclarecimento

Segundo os registos, eu não devia ter nascido onde nasci. Acontece, porém, que a cegonha que me transportava, desde um lugar secreto no norte de França, foi subitamente fulminada por um enfarte do miocárdio durante a viagem. Embora à beira de soçobrar, conseguiu descer e fazer a entrega no número 51 da Rua dos Quartéis, à Boa Hora, em Lisboa. Por uma daquelas curiosas coincidências do Destino, também o senhor e a senhora, que viviam naquela casa singela, aguardavam por uma criança. De forma que não estranharam. Resta dizer que a cegonha, após a entrega do peso que trazia pendurado no bico, ainda conseguiu, num esforço heróico, descolar e voar mais um bocadinho. Mas não rumou ao norte, em direção à sua base em França; desnorteada como estava, rumou ao sul. Não tardou a bater as asas pela última vez. Perdida a força propulsora desabou na vertical, como seria de esperar num planeta com força de gravidade. As testemunhas que, alertadas pelo assobio da queda, levantaram o nariz para ver o que se passava, afirmaram que um objeto não identificado se estatelou no convés de um cacilheiro que, acabado de chegar de Lisboa, despejava passageiros em Cacilhas, na margem sul do Tejo. Portanto, eu não sou português; calhou nascer em Portugal. Seguindo o mesmo raciocínio, também não sou alfacinha; apenas fui abandonado em Lisboa por causa de um malfadado imprevisto. Embora tenha investido em profundas investigações, ainda não consegui descobrir qual era o destino da viagem daquela pobre cegonha. Dito isto, quem se admirará com o que se segue?

 

O Signo Ascendente

Quando aqui cheguei (trazido por uma cegonha doente)
embora ainda fosse noite escura, no ponto do Sol Nascente
levantava-se, soprando friamente, o Ar de Aquário.
Era o grau 7.32 para falar concretamente.

Hoje, confirma-se: sou um dedicado irmão de Urano,
pois que da minha sagrada liberdade não abdico.
Além disso, fujo de quem me quer dentro dum armário.
Assumo um desafeto hostil pla fibrose múltipla do Vaticano,
tendo a fazer chichi em qualquer lado, menos no penico.

Se, no Passado Ancestral, subi a Espiral derrapando,
foi porque, erguida na melhor mão, trazia uma espada.
Nesta vida, porém, tudo o que me foi trabalhando,
foi dando ao meu ser uma configuração informal.
Aquela outra que, no Passado, foi predominante,
foi sendo pouco a pouco alterada.

Para tratar disso, não cheguei nem antes nem depois;
cheguei em Maio no vigésimo minuto do dia 22.

 

— O Sol —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
vê-se o Sol em Gémeos – o Jovial Conversador.
No lar, todavia, não havia (nem houve posteriormente)
nenhuma irmã, nem irmão chamado Pólux ou Castor.

Talvez por isso, da noite sempre fui um atento observador.
O Sol, embora caseiro, está irado com Marte, gravemente.
Talvez por isso, meu pai, beirão e marujo, se irava com arte.
Quanto à minha mãe, alfacinha, costurava para um patrão.

Desci, quando a cegonha falhou, um mês antes do Verão.
Então, o Futuro – filho de Aquário – chegou sorrateiro,
baixou do Céu à Terra com um Ar nada corriqueiro
e, após conquistar o meu sangue, nele se desfez.
Singulares luzes e vibrações nesse instante inspirei.

Hoje, porém, uma pergunta aflige aquilo que sei:
– quando, no último dia, exalar o Sopro Derradeiro,
levarei comigo o que de bom nesta vida se passou
como se, dentro de mim, vivesse o Todo inteiro?
Ou, ao contrário, olhando as mãos, apenas levarei
o ruído estridente do meu sino desafinado
– esse som ruidoso que, ao longo dos anos, propagou
a vida atribulada que tive quase em todo o lado?

 

— A Lua —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
vê-se a Lua a flutuar na densa Água de Escorpião,
afligida pelo severo Saturno e pelo implacável Plutão.

Talvez por isso, vivi os primeiros anos longe dos pais
(só dormindo na casa onde a cegonha me pôs no chão)
ao cuidado duns tios, empregados duma agência funerária.

Para contornar esta escorpiónica, macabra e obscura sorte,
escavei uma Gruta-Onde-Sempre-Brilha-Um-Girassol
na qual descanso o mais longe possível da palidez da morte.

 

— Mercúrio —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
vê-se Mercúrio, com seu caduceu, dentro no signo do Sol,
dando a mão a Urano na radiosa Casa de Leão.
Talvez por isso, quando se trata de Prosa e Poesia,
nunca me ponho com desculpas parvas. E nunca desisti
sempre que em ambas reparei, direitas e dignas, de plantão,
aguardando por quem as trate com apreço e simpatia.

No Passado, quando eu acompanhava Mercúrio à Terra,
Ele dizia-me: “As mentes atrasadas são como labirintos.”
Hoje, infelizmente, esses bons tempos estão extintos
porque a minha velha alma só neste mundo aterra.

Mas, porque as “mentes atrasadas” seguem abundando,
Mercúrio, na esperança de pôr fim ao ódio e à guerra,
propõe-lhes dois métodos de evolução bem distintos:
– Um é lendo e intuindo; o outro é lendo e estudando.
A mente dos que aceitaram o primeiro, já não emperra;
os que elegeram o segundo não conseguem ser sucintos.

 

— Vénus —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
vê-se Vénus a banhar-se na Água morna de Caranguejo
na Casa de Leão, iludida por Neptuno na Toca do Lacrau.
Durante décadas, Vénus, ao sentir uma sensação estranha,
perguntou: “Por que tenho eu de virar tripas sem ter pau?”
Hoje, Neptuno – o Deus da Fantasia – já não lhe ganha.

Quem me segura agora, quando me sinto exasperado?
Quem me embala quando acelero o meu remoinho,
que não há meio de se cansar de ser rodopiado?
É ela, Vénus, a Deusa Meiga, plena de amor e de carinho,
ela, a Deusa Quente que odeia ter a Solidão ao seu lado.
Por isso nos encontramos muitas vezes no Caminho.

 

— Marte —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
vê-se Marte em Virgem – esse Molde da Minúcia –
no grau 1, irritando o Sol geminiano – o Miúdo Lendário.
Já sofri de nervoso miudinho, mas relógio já não tenho.
Meu pai, militar, na pele me tatuou o termo “horário”,
mas de Saturno/Cronos já não sou seguidor ferrenho.

Marte, num fogoso frenesim sempre mergulhado,
dá-me um estilo de escrita que, a cada momento,
se exprime através da mania do apuramento.

Fazendo alarde de que nunca se sente cansado
desse meticuloso e pertinaz entretenimento,
diz: “Para apurar um texto nunca me falta alento”!

Talvez por isso, quando se irrita por se ter enganado,
garante: “Para evoluir, tudo me serve de fermento”!

 

— Júpiter —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
Júpiter passava pelo Centauro – o símbolo de Sagitário –
na Casa do Futuro , defronte do par Mercúrio/Urano.
Se Júpiter não me passou nenhum gosto pelo sacrário,
já para dar as minhas velas ao vento me deu rijo pano.
Talvez por isso, prefiro o Tibete a Meca e ao Vaticano.

Júpiter (ou seja, Zeus, o maioral de todos os Deuses)
na Casa do seu avô Urano, muito se diverte e recreia.
Desde lá, com a mão dourada, saúda, com muitos adeuses
o lado oposto onde as Forças da Criação me põem a vida cheia.
E, enquanto com a bela Deusa da Esperança se passeia,
garante que a minha Musa Menina é muito boa pessoa.
Eu sei que Júpiter só boas intenções em mim semeia.
Mas, quando a ironia vira sarcasmo, não só me chateia,
como (muitas vezes já aconteceu) faz com que me doa.

 

— Saturno —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
Saturno, com sua candeia, estava em Leão na Casa 7.
À frente de Plutão e perseguindo Marte, forma o trio perigoso
que me serviu os Ovos do Amor, desfeitos, em omelete.
Mas já me livrei dessa diarreia e do seu fedor venenoso
que me azedou o coração e deixou nódoas na carpete.

Nesta Mansão das Parcerias vivi duras relações.
O meu sincero e legítimo desejo de laços estabelecer,
sempre foi contrariado por mil logros e frustrações.
Mas, durante as pausas de paz, recebi premonições
de que precisava de sanear o coração, para conhecer
o molde de ouro que produz a parceira desejada.

 

— Urano —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
vê-se Urano tocando em Mercúrio – o Jovem Instrutor.
Na Toca de Leão, com todo o seu poder e pujança,
o poder criativo desse par tem jogado a meu favor.
Se esta parceria inspirou escritos de encher a pança,
a oposição de Júpiter (que os deuses conhece de cor),
cobrindo-os de exagero, roubou-me o sossego e a bonança.

Nasci quando os Deuses me enviaram em forma de gente.
Cheguei quando ascendia o signo de Urano – o Arejado,
sendo por isso que Aquário é o meu signo Ascendente.
Mas é Saturno – que de Aquário por séculos foi regente –
que abre o cofre onde o medo meu tem vivido ocultado.
Talvez por isso, tudo o que tenho mantido resguardado
precisa de ser extraído. Só que o medo não sai facilmente.

 

— Neptuno —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
Neptuno passava, com o seu carro dourado, por Balança,
iludindo, como disse, a doce Vénus – a Deusa da Paixão.
E onde está Neptuno? Está na Casa Negra de Escorpião.
Talvez por isso, a bênção que deu ao amor de cada dança,
acabou perdida por se ter afundado no Poço da Ilusão.

Hoje, posso assegurar que o conceito de mutabilidade,
proposto por Neptuno quando está em Escorpião,
não é passar do Verso Branco para o Verso com Rima,
nem é transpor o portal que separa a Vida da Morte.
Direi, na esperança de evitar qualquer confusão:
– A Via da Mutabilidade é a via alquímica da Verdade,
que honra, firmemente, o sentido de baixo para cima
e respeita, seguramente, a direção de Sul para Norte.
Talvez por isso é que neste jogo não entra a sorte.

 

— Plutão —

Analisando o mapa do minuto e do local onde desci,
Plutão – o Senhor do Submundo – passava por Leão,
tendo, quatro graus à sua frente, Saturno, seu progenitor.

Talvez por isso, ambos me dizem sem qualquer pudor:

— Meu velho amigo, faças tu assim ou faças assado,
nada terás se não cederes perante quem está ao teu lado.
Para despires a capa, pesada e negra, do que foi feio
e transcenderes os erros do passado que causam dor,
tens de domar o impulsivo Marte – o Sempre Apressado!
Só depois dessa façanha entrarás no Caminho do Meio,
erguendo bem ao alto o azul celeste do seu estandarte.
É certo que aqui e ali sangrarás quando morderes o freio,
mas o Ser que se sente vazio não tarda a sentir-se cheio!


— Conclusão —

Epitáfio

Aqui jazo, finalmente, na horizontal, livre e repousado,
tal como sempre quis em vida. Mas nunca o consegui
devido à sensação de que a este mundo não pertenço.

Terminado o tempo, tão longo, que me foi reservado,
para outro lado (não sei se alto, não sei se baixo) parti.
Oxalá nesse lugar eu venha a sentir que a ele pertenço.

Um poeta jovial (embora morto) serve em todo o lado,
tenha chão pra pôr os pés, esteja no espaço suspenso,
ou somente se mantenha num qualquer céu elevado.

 

— Post Scriptum —

“Se voltasse atrás, faria tudo outra vez, sem mudar nada.”

Para grande surpresa minha, isto é o que diz muita gente;
eu cá, se pudesse voltar atrás, faria quase tudo diferente!